«Numa altura em que é necessário criar emprego, criar riqueza e o crédito é escasso, “mexer” num mercado que funciona mal e colocá-lo “em funcionamento” passou a ser uma necessidade “quase incontornável”.»
Permitam-me que comece por relatar uma pequena história de que tive conhecimento.
Um casal reformado, com uma pensão relativamente reduzida, é proprietário de dois apartamentos em Lisboa. Um destina-se a habitação própria do casal e outro encontra-se arrendado sendo uma importante fonte dos rendimentos familiares.
O apartamento foi arrendado há aproximadamente dois anos e meio a um empresário com uma aparente “situação financeira desafogada”. Receberam dois meses de renda e depois mais nada. Recorreram aos serviços de um advogado, tentou-se um acordo amigável sem êxito, o assunto seguiu para tribunal e passados dois anos lá se conseguiu executar o despejo coercivo do inquilino em incumprimento. Como se não bastasse, o apartamento apresentava sinais de utilização “descuidada”, pelo que seria necessário proceder a algumas obras de conservação para que pudesse voltar a ser arrendado.
Por diferentes conversas (com advogados, mediadores, funcionários judiciais, etc.) este casal apercebeu-se de que tinha sido “vítima de um golpe”. Não eram os únicos (no passado esta “história” tinha-se repetido com pelo menos outros dois senhorios e o mesmo inquilino). Este “inquilino” aparentemente descobriu um “furo” no funcionamento da “máquina da justiça” e arranjou uma maneira de viver em Lisboa durante aproximadamente dois anos (por cada senhorio) pagando apenas dois meses de renda. Não existe a mínima dúvida de que perante a lei este casal tem direito a ser ressarcido dos prejuízos que sofreu e que este “inquilino” deverá ser obrigado a pagar esses prejuízos. O problema é que, na prática, não se consegue fazer “justiça”.
Estas “histórias” que todos nós “vamos sabendo” criam no mercado um sentimento de insegurança. Quando existe falta de confiança o mercado não funciona ou funcional mal. É o caso do mercado de arrendamento habitacional em Portugal. Existem outros motivos pelos quais o mercado funciona mal, como por exemplo, as denominadas “rendas antigas”, mas esses assuntos iremos deixar para uma abordagem em ocasiões futuras.
À medida que este “tipo de história” vai sendo conhecida é da natureza humana que se verifique o seguinte:
a) Que não existam mais pessoas a sujeitar-se “a terem azar”, ou em alternativa, que exijam uma elevada taxa de rentabilidade (leia-se renda pedida) pelo risco que correm;
b) Que existam mais pessoas a praticarem “crimes” que compensam e deixam lucro;
c) Que o mercado funcione mal.
As alterações no mercado de arrendamento habitacional são assim um assunto incontornável? De um ponto de vista ético sem dúvida mas a verdade é que a sociedade portuguesa convive com ela, talvez há demasiado tempo e talvez com “demasiada acomodação”.
Então o que torna o assunto incontornável? Aparentemente é “a crise”. Numa altura em que é necessário criar emprego, criar riqueza e o crédito é escasso, “mexer” num mercado que funciona mal e colocá-lo “em funcionamento” passou a ser uma necessidade “quase incontornável”. Na minha opinião é isto que está por detrás das recentes propostas legislativas.
No entanto contra esta alteração têm-se ouvido algumas opiniões de que nas habitações vivem pessoas e que numa altura de dificuldades não se devia agilizar despejos, etc.
Parece-me que este confronto de ideias é um falso confronto. Por razões éticas, de justiça e de transparência, os senhorios e os inquilinos devem ver os seus direitos e obrigações respeitados em toda a sua amplitude. E o sistema deve assegurar que são cumpridos.
A manutenção da actual situação é imoral em Lisboa, em Chaves, em Chicago, em Pequim, em Londres ou em Luanda. A diferença está na forma como os “aldrabões profissionais” são tratados e os seus “esquemas” são combatidos ou não.
Sobre as questões sociais relacionadas com a habitação, o Estado deve definir uma politica de apoio a quem está em dificuldades. Essa política requer uma definição estratégica de quem e em que circunstâncias pessoas em dificuldades devem ser apoiadas. E do que se pode e quer gastar. Essa política social implicará decisões difíceis entre o que se “quer ser solidário” e aquilo que se “está disposto a gastar”. Implicará coragem. A conta será sempre assustadora. Tão assustadora que desde o tempo de Salazar existe a tentação de partilhar a factura com os privados…
Talvez agora se dê apenas o pontapé de saída. Será importante. É sempre importante resolver questões éticas e de princípios. Mas a prazo, mais tarde ou mais cedo, ter-se-ão de definir politicas estruturantes para o sector da habitação.
Vamos aguardar. Ver para crer como S. Tomé. Por vezes em alturas de crise financeira não temos “as almofadas” para olhar para o lado e não “pegar o touro pelos chifres”. Mas não tenhamos dúvidas, se existir alguma possibilidade de assobiarmos para o lado, não hesitaremos. Se pudermos contornar a questão é esse o caminho que irá ser seguido. Só a não contornamos se formos obrigados. E agora existe uma forte possibilidade de sermos mesmo obrigados. Essa poderá ser a “face boa” da crise.
Bons negócios imobiliários (com coragem).
Por João Nunes,
Director-Coordenador de Consultoria
Colliers International
fonte: out-of-the-boxthinking.blogspot.com
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